Porcaria, besteira, tranqueira, diria a sua mãe. Alimento com alto teor calórico e nível reduzido de nutrientes, diria seu médico. Delícia, diria você. Não importa a definição, fato é que o consumo excessivo de produtos industrializados como salgadinhos e biscoitos carrega boa parte da culpa pela epidemia de obesidade que atinge o planeta — e estar acima do peso, como se encontra hoje quase metade dos brasileiros, contribui ainda para uma série de doenças, de diabete a câncer. Enquanto as autoridades elaboram projetos de lei e campanhas, parte da solução começa a ser traçada em laboratórios: pesquisadores estão repensando e reformulando a chamada junk food. A ideia é transformar alimentos vistos como tranqueira, populares no mercado e sedutores ao paladar, em uma fonte de benefícios.
Esse movimento já começa a render frutos e perspectivas no Brasil. “Incorporar nutrientes vantajosos à fórmula de alimentos processados faz parte de uma necessidade, uma vez que não temos como prescindir deles no dia a dia”, afirma o bioquímico José Alfredo Arêas, coordenador do Laboratório de Propriedades Funcionais da Faculdade de Saúde Pública da USP. Arêas orientou a criação de um dos produtos que seguem essa tendência: um salgadinho de milho livre de gordura e enriquecido com fibras. O produto tem menos calorias que os tradicionais (307 contra 470, numa porção de 100 gramas) e, por conta das fibras, ajuda a equilibrar os níveis de colesterol e melhorar o trânsito intestinal. E o gosto, ficou pior? Em testes com consumidores, a aceitação caiu. “Mas muito pouco. Os índices foram de 95% com o produto convencional para 90% com a versão modificada”, diz Arêas. O produto foi patenteado e teve seus direitos comerciais negociados com um fabricante do Nordeste, mas ainda não há previsão de lançamento.
SALGADINHO DE FIBRA
INSTITUIÇÃO: Faculdade de Saúde Pública da USP O QUE TEM DE ESPECIAL: Salgadinho de milho com isenção de gordura e adição de fibras GANHO PARA A SAÚDE:
As fibras servem de alimento às bactérias do intestino, que, bem
saciadas, produzem diversos compostos benéficos ligados à redução do
colesterol, controle do sistema imune, mais fluidez para o trânsito
intestinal e diminuição do risco de tumores. A ausência de gordura
minimiza danos cardiovasculares e a chance de ficar barrigudo. EM QUE PÉ ESTÁ:
Bem avaliados em testes com consumidores — sabor e textura têm índice
de aceitação próximos aos de salgadinhos tradicionais —, seus direitos
comerciais foram comprados por uma empresa nacional, mas não há previsão
de lançamento. |
O segmento da “junk food saudável” está, é verdade, mais adiantado nos Estados Unidos, onde alguns doces já são vendidos. Estudantes da Universidade do Missouri podem degustar em seu campus um sorvete que turbina o sistema imune e regula a flora intestinal, criado pelo Ph.D. em química Ingolf Gruen, professor da instituição. “Trabalhávamos com a ideia de um sorvete sem gordura, mas isso nunca foi popularizado. Então pensamos em adicionar compostos saudáveis à fórmula tradicional”, relata. A massa ganhou antioxidantes (moléculas que zelam pela integridade das células), provenientes do açaí e do mirtilo, bactérias que povoam e protegem o intestino e fibras. Dribladas algumas dificuldades — pequenos desvios na quantidade de fibra podem comprometer a textura —, o produto tem, segundo Gruen, boa possibilidade de ser fabricado em nível industrial. Tal facilidade de manipulação é responsável, aliás, por cada vez mais picolés vitaminados, com menos calorias e sem corantes e aromatizantes artificiais no mercado brasileiro. “Nessa classe de alimentos, a redução de açúcar e a substituição de ingredientes não causam uma grande interferência em suas características sensoriais”, diz a nutricionista Jocelem Salgado, presidente da Associação Brasileira de Alimentos Funcionais.
Mais avançada nesse sentido é a produção (e a oferta) de chocolates que trariam mais proveitos do que prejuízos ao corpo. Nos EUA, já está disponível uma linha desses doces livres das substâncias que costumam condená-los aos olhos dos médicos. Ela foi desenvolvida pela Unreal, empresa que tirou do chocolate seus ingredientes artificiais, como gordura trans e corantes, relacionados a doenças cardiovasculares e alergias. A receita contém óleo de palma orgânica e leite de vacas alimentadas sem ração artificial. Tudo para que o consumidor possa saboreá-lo sem tanta culpa.
QUASE UM REMÉDIO
Não pense que essa tendência vai demorar a pegar no Brasil. Podemos esperar muito em breve cookies, bolos e bombons dotados de benefícios cosméticos ou medicinais. Alguns deles têm indicações tão específicas que lembram até medicamentos com cara de guloseima. É o caso de caramelos com menos açúcar e enriquecidos com vitamina D (nutriente fundamental para os ossos), criados pela empresa brasileira M. Cassab. Como a substância está em níveis inadequados em metade da nossa população, e alimentos em geral não ofertam a vitamina em grande quantidade, os doces seriam uma forma de ajudar a resolver o problema. “Cada dadinho oferece 50 unidades internacionais (UI) de vitamina D, sendo que, no Brasil, a recomendação é suprir 200 UIs diárias”, diz a química e gerente de novos negócios Leila Coelho. E o produto, fica muito diferente? GALILEU provou e pode dizer que muda muito pouco em relação aos tradicionais — só é levemente mais duro.
O grupo M. Cassab tem um departamento voltado a pensar nesse tipo de alimento para depois oferecê-lo à indústria. Já desenvolveu gomas e um bolo pronto com colágeno e antioxidantes (que dão firmeza à pele), balas vitaminadas e um sorvete rico em betacaroteno (que protege a pele e ajuda a pegar bronzeado). Alguns produtos visam resolver demandas até mais imediatas. É o caso de um chocolate desenhado para conter sintomas da TPM, como desânimo e irritação. “Reduzimos o valor calórico em sua fórmula e acrescentamos ômega-3, antioxidantes e vitaminas do complexo B, que interferem na bioquímica cerebral, favorecendo a sensação de bem-estar”, conta Leila. O chocolate, que é mais amargo, deve ser lançado pela empresa de um nutrólogo em breve. O bolo da beleza e o sorvete do bronzeado, assim como outros conceitos, são apresentados em feiras, à espera de empresas que comprem a ideia e deem início à produção em larga escala. “A comercialização deve, num primeiro momento, ficar mais restrita a lojas de produtos naturais”, acredita Leila.
Alimentos com finalidades, digamos, terapêuticas não se limitam ao campo da estética e das emoções. Podem auxiliar a resolver questões de saúde pública. Na USP, o grupo do professor Arêas criou salgadinhos fortificados capazes de combater e prevenir anemia causada por deficiência de ferro no sangue. Eles são feitos de milho e grão-de-bico, mas seu ingrediente especial é menos convidativo: pulmão de boi. Acontece que ele é rico em ferro e não altera demais o sabor e a textura. O snack foi testado com sucesso em um trabalho conduzido junto à Universidade Federal do Piauí com 380 crianças de Teresina, local com alta prevalência de anemia. Entre aquelas que comeram o salgadinho com pulmão bovino, o índice de afetados pelo problema caiu de 61,5% para 11,5%. E a aceitação superou o esperado. Ideia semelhante move uma parceria entre PepsiCo e Embrapa. Os pesquisadores criaram uma mandioca modificada que possui concentração 15 vezes maior da vitamina A. “Estamos desenvolvendo um snack tendo como base essa raiz. É uma forma de atender às necessidades nutricionais de algumas populações sem precisar recorrer a vitaminas sintéticas”, conta Sérgio Júlio, diretor de pesquisa e desenvolvimento da PepsiCo, referindo-se ao Nordeste brasileiro, onde não é raro o déficit da substância.
CHOCOLATE ANTITPM
INSTITUIÇÃO: Grupo M. Cassab O QUE TEM DE ESPECIAL: Antioxidantes, ômega-3 e vitaminas do complexo B GANHO PARA A SAÚDE:
As vitaminas estimulam a produção de neurotransmissores ligados à
sensação de bem-estar, o que ajudaria a aplacar a ansiedade, a
irritabilidade e o desânimo da fase pré-menstrual. Provado pela ala
feminina da GALILEU, dividiu opiniões: fez efeito pra umas, nem tanto
pra outras. O sabor foi aprovado, mas apontaram um gosto residual após o
consumo. EM QUE PÉ ESTÁ: Barrinhas do chocolate, que é mais amargo, serão lançadas comercialmente pela empresa de um nutrólogo em breve. |
MUITO ALÉM DO PACOTE
A ascensão da “junk
food saudável” também é reflexo do aumento de interesse dos consumidores
por produtos com esse apelo. Enquanto as vendas entre os alimentos
processados no Brasil aumentaram 12% em 2011, os alimentos do setor de
bem-estar e nutrição balanceada cresceram 18%, segundo levantamento do
Euromonitor. “É um nicho que continuará apresentando taxas de
crescimento superiores”, diz Meika Nakamura, analista do instituto. Na
mesma linha, pesquisa recente do Ibope indica que qualidade e aspecto
nutritivo devem passar a ser mais valorizados pelos consumidores nos
próximos anos, fazendo marca, sabor e preço perderem terreno na lista de
prioridades. “Não se trata de moda passageira. Essa tendência deve
atingir a maioria das categorias de alimentos”, avalia Sérgio Júlio.
Além disso, a pressão governamental exercida no Brasil e em vários países pesa a favor da tendência. Aqui, um acordo entre a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação e o Ministério da Saúde prevê diminuir gradualmente o teor de sódio de diversos alimentos até 2014. Nos EUA, a primeira-dama Michelle Obama encabeçou um programa para fazer grandes reduções de sal e de açúcar. O Wal-Mart, maior varejista do país, aderiu, e quem não fizer reduções expressivas nesses componentes poderá ver seus produtos fora das prateleiras.
As próprias redes de fast food já surfam nessa onda. As mais tradicionais incluíram no cardápio frutas e saladas. E as lojas especializadas em comida saudável são as que mais crescem nos EUA e no Brasil. De acordo com a Associação Brasileira de Franchising, há 97 lojas do gênero funcionando em cinco estados por aqui. Quase metade foi inaugurada há apenas dois anos. A tendência pegou até o ex-presidente do McDonald’s, Mike Roberts, que lançou em 2011 a Lyfe, uma franquia de refeições rápidas feitas apenas com ingredientes naturais e produzidos de forma sustentável.
HAMBÚRGUER DE BANANA
INSTITUIÇÃO: Fatec de Itapetininga, interior de São Paulo O QUE TEM DE ESPECIAL: Usa como ingrediente de base a banana verde e não contém carne. GANHO PARA A SAÚDE:
A banana verde oferta um tipo especial de amido, o resistente, que se
comporta como fibra, melhorando o funcionamento do intestino e
auxiliando a controlar o açúcar e o colesterol no sangue. A banana ainda
fornece triptofano, substância que eleva os níveis de um
neurotransmissor associado à sensação de felicidade. EM QUE PÉ ESTÁ:
A criadora, Bruna Renzano, tem lutado com a burocracia para patentear o
produto e viabilizar sua fabricação em larga escala. Como o Brasil é um
dos maiores produtores de banana do mundo, não se espera que o
ingrediente encareça o hambúrguer. O sabor, longe de lembrar banana,
parece com o de carne devido ao uso de temperos. |
DESAFIOS NA RECEITA
Apesar de um mercado mais receptivo e de governos preocupados, melhorar os alimentos industrializados não é tarefa tão singela. “A troca por componentes mais saudáveis nem sempre é possível sem consequências na qualidade, no prazo de validade e no preço”, pondera o químico Renato Grimaldi, professor da Unicamp. A indústria só conseguiu eliminar a gordura trans (que causa problemas para o coração) a custo de muito investimento para encontrar bons substitutos — e olha que as empresas de pequeno porte, por razões econômicas, ainda se valem do ingrediente. Mesmo assim, há uma busca constante para adotar óleos mais balanceados e diminuir a concentração de gordura. Podar o sódio é outra dificuldade, já que ele é um tremendo conservante. Como reduzir a quantidade da substância pode tornar os produtos insossos, há empresas focadas em criar formas de compensar a alteração. A multinacional Givaudan investiga o papel do sódio no paladar para encontrar substitutos que garantam a aceitação a produtos com taxas reduzidas. “Isso permite descobrir novos ingredientes que, combinados, restauram a dimensão do sabor salgado”, diz Daniela Macedo, gerente de produtos salgados para a América Latina. Muitas vezes, a própria natureza se encarrega de ajudar, pelo menos no que diz respeito a eliminar conservantes e corantes artificiais. “Substâncias naturais, como a cúrcuma e o urucum, já são utilizadas para dar coloração a alguns alimentos com a vantagem de serem mais saudáveis”, exemplifica Ana Feoli, coordenadora do curso de nutrição da PUC-RS.
Quando o assunto é agregar substâncias funcionais a um produto tradicional, é preciso ainda vencer um possível entrave ao paladar: aquele gostinho estranho que resulta da inclusão de um novo nutriente. “Alimentos com teores elevados de cálcio, vitamina C, ômega-3 ou enriquecidos com soja podem apresentar sabor residual”, explica a nutricionista Denise Ziegler, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Daí a necessidade de acertar na medida ou na combinação para não gerar rejeição. Outro questionamento ainda pode vir à cabeça de quem está fazendo as compras: como eu vou saber se os efeitos apontados pela embalagem procedem? A Anvisa, agência que regula remédios e alimentos no país, estipula as quantidades mínima e máxima para as empresas não só fabricarem os produtos, mas também estamparem suas vantagens no rótulo. Mas, ao contrário dos medicamentos, comidas nem sempre precisam passar por estudos clínicos. Isso só acontece quando um produto atesta na embalagem um benefício — “regula a flora intestinal” — e, aí, tem de apresentar uma documentação científica que legitime a publicidade.
Por falar nisso, cresce o número de pesquisas no campo da biodisponibilidade, isto é, a capacidade de o nutriente ser realmente aproveitado pelo corpo. “Fazemos em laboratório uma simulação da digestão humana para saber se os compostos bioativos passarão em quantidade suficiente para exercer sua ação”, conta o nutricionista Marcelo Marques, que estuda proteínas extraídas do feijão de corda com potencial anticolesterol e que podem ser incorporadas a salgadinhos na Faculdade de Saúde Pública da USP. Claro, ingredientes diferenciados tendem a elevar o preço da mercadoria, mas é possível que, com a produção em larga escala, o valor caia depois.
APRECIE COM MODERAÇÃO
Apesar dos esforços em transformar os vilões da alimentação em aliados da saúde, a tendência desperta visão crítica de quem se debruça sobre o comportamento alimentar. Afinal, repaginar a junk e a fast food não seria um mero paliativo? Não estaríamos fugindo dos principais erros, como cometer abusos constantes e priorizar a comida mais prática e industrializada? Os especialistas ouvidos por GALILEU enfatizam que, apesar de a tendência ser positiva, requer atenção e consciência do consumidor, sobretudo em relação às crianças. “É na infância que se sedimenta o hábito alimentar e isso tem repercussão para o resto da vida. É preciso ter cautela com os produtos processados, já que seu apelo sensorial costuma atrair mais os pequenos”, avisa a nutricionista Ana Vládia Bandeira Moreira, professora da Universidade Federal de Viçosa.
Melhorar alimentos industrializados, por si só, também não parece ser uma solução definitiva em termos de saúde pública. Isso tem sido discutido nos Estados Unidos, onde se vive um fenômeno batizado de paradoxo da obesidade: enquanto o mercado americano de alimentos saudáveis cresce a uma taxa de 6% ao ano, o número de obesos aumenta 3% no mesmo período. Brian Wansink, Ph.D. em psicologia da alimentação e professor da Universidade Cornell, atribui essa aparente contradição à lei da compensação que rege as escolhas alimentares. “Em meus estudos observo que, diante de uma opção supostamente mais vantajosa à saúde, as pessoas chegam a comer 40% a mais”, conta.
A vontade de compensar dentro de nós também opera de outro jeito. “Ao consumir um produto light, por exemplo, o indivíduo pode acreditar que tem menos necessidade de se exercitar ou, então, se sentir livre para exagerar em outras refeições”, diz o psicólogo Sebastião Almeida, coordenador do Laboratório de Comportamento Alimentar da USP de Ribeirão Preto. Quando um alimento é vendido sob a propaganda de funcional e gostoso, há o risco de pessoas se darem o direito de abusar ou imaginar que ele elimina a necessidade de recorrer a frutas e verduras — equívoco que deve ser evitado.
SALGADINHO CLASSE A
INSTITUIÇÃO: PepsiCo e Embrapa O QUE TEM DE ESPECIAL: Snack à base de mandioca rico em vitamina A GANHO PARA A SAÚDE:
Pesquisadores da Embrapa conseguiram produzir, por meio de cruzamentos,
uma mandioca com uma quantidade 15 vezes maior de vitamina A. A PepsiCo
está empregando o alimento como base para um snack voltado a suprir o
déficit da substância, mal prevalente em estados do Nordeste e que pode
gerar problemas crônicos de visão a partir da infância. EM QUE PÉ ESTÁ: O produto está em fase de desenvolvimento e depois deve passar por testes de eficácia e aceitabilidade. |
Já que comida também é uma fonte de prazer, hambúrgueres, salgadinhos e guloseimas com vantagens nutricionais uniriam o útil ao agradável. “Mas quem já mantém uma alimentação mais natural e saudável não precisaria incluir esses produtos para compor uma dieta equilibrada”, pondera a nutricionista Mariana Del Bosco, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica. A melhor receita, ditada pela ciência, é domar a gula, escapar das compensações e refletir sobre as escolhas para, muito em breve, tirar proveito da reinvenção da junk food. Informações Revista Galileu.